segunda-feira, 19 de julho de 2010

Educação Infantil

Incômodo raio x

Pesquisa revela que 50% das creches e 30% das pré-escolas encontram-se em situação inadequada; especialista em educação infantil alerta para possíveis falhas no estudo
Beatriz Rey


Notas atribuídas às escolas da região Sudeste são melhores, mais ainda estão distantes do nível considerado excelente

A qualidade das escolas brasileiras de educação infantil está longe de alcançar o patamar ideal. O diagnóstico é da pesquisa "Educação infantil no Brasil: avaliação qualitativa e quantitativa", realizada pela Fundação Carlos Chagas (FCC), pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pelo Ministério da Educação. Divulgado parcialmente em junho, o estudo traz dados que reafirmam a necessidade de investimento nessa etapa de educação: quase 50% das creches e 30% das pré-escolas analisadas encontram-se em situação inadequada em diversos quesitos, como mobiliário, interação e atividades em sala. Apenas 1,1% das creches e 3,6% das pré-escolas foram classificadas no nível "bom".

A equipe de pesquisa da FCC visitou 91 salas de creche e 138 salas de pré-escola em seis capitais: Belém, Fortaleza, Teresina, Campo Grande, Rio de Janeiro e Florianópolis. Para avaliar as condições das escolas, foram usadas duas escalas internacionais de observação. A primeira, aplicada às creches, chama-se "Iters-R", é adequada a crianças de 0 a 2 anos e traz 39 itens. A segunda, "Ecers-R", indicada para a faixa etária de 2 anos e 7 meses até 5 anos, é dividida em 43 itens. Ambas trabalham com sete categorias de observação: espaço e mobiliário; rotinas de cuidado pessoal; falar e compreender; atividades; interação; estrutura do programa; e pais e equipe.

Para a versão brasileira da aferição, a FCC realizou uma mudança na escala de pontuação aplicada às escolas. Originalmente, ela varia de 1 a 7 e há quatro níveis (inadequado, mínimo, bom e excelente). A adaptação prevê cinco níveis (inadequado, básico, adequado, bom e excelente) e varia de 1 a 10. No evento de divulgação dos resultados, a equipe da FCC afirmou que a mudança aconteceu porque a cultura brasileira está mais habituada com escalas que variam de 0 a 10.

As piores notas foram atribuídas, nas creches ou na pré-escola, a duas cidades da região Nordeste: Fortaleza e Teresina. Em Teresina, as creches receberam média 2,3 e a pré-escola, 2,7. Em Fortaleza, 2,7 e 2,2, respectivamente. Belém aparece com 2,7 e 3,2. Todos os números indicam que as escolas estão na faixa considerada inadequada. No Sul e no Sudeste, o quadro não é tão diferente. Em creches e pré-escolas, o Rio de Janeiro recebeu 3,9 e 3,6, respectivamente. As creches de Florianópolis receberam 4,4 e as pré-escolas, 4,7. A diferenciação de escalas foi recebida com reservas. Para a pesquisadora Tizuko Mishimoto, da Faculdade de Educação da USP, se a pontuação usada fosse a original, o Rio de Janeiro, por exemplo, ficaria no nível "mínimo". Na escala adaptada, a pontuação indica que as escolas estão no nível "básico". "O meu questionamento é o termo que se usa. No Brasil, a terminologia 'básico' tem o significado de atendimento mínimo das necessidades. Pode-se entender que o básico já foi atendido. Há gestores que acham que verba para a educação infantil não é importante. Eles podem se prender a isso", explica. Tizuko faz outra advertência: como a escala brasileira ficou diferente, foi criado um problema nas comparações internacionais. "Teremos de mudar os dados para comparar. Nenhum pesquisador faz isso", alerta. Essa comparação é justamente uma das justificativas de seleção das escalas Iters-R e Ecers-R. De acordo com o material divulgado pela FCC, elas são amplamente utilizadas em diversos países, o que permitiria comparações com os dados brasileiros.

O que dizem os números
A média geral obtida pelas creches das seis capitais é de 3,3, o que significa que elas estão na situação "básica" (ou "mínima", na escala original). Entre os itens que definem esse número, os que receberam nota mais baixa foram "atividades" (2,2), "rotinas de cuidado pessoal" (2,9) e "espaço e mobiliário" (3,1). O problema maior do item "rotinas de cuidado pessoal" foi o sono (1,8). Um dado que surpreendeu os pesquisadores foi o baixo índice do uso de livros, subitem que recebeu 1,5 no item "falar e compreender". No caso das creches, a média também foi baixa (3,4). Os piores itens foram atividades (2,3), estrutura do programa (2,5) e espaço e mobiliário (3,1). O problema com o sono continua nessa etapa da educação, mesmo com a nota um pouco maior (2,6). Da mesma maneira, há pouco uso do livro (2,6).

Nos dois tipos de escola a média de "atividades" é baixíssima, quando comparada com "interação". No caso das creches, alcança 2,2, enquanto "interação" chega a 5,7. O quadro se repete nas pré-escolas: são 2,3 contra 5,6. Mas como é possível haver boa interação se as atividades não são adequadas? Para Tizuko, há dois problemas que explicam esse impasse. O primeiro diz respeito à própria escala, que desvincula a atividade da interação. Assim, a interação é observada a partir da relação criança-criança. "É como se ela quase interagisse no vazio. Não é considerado o que ela está fazendo naquele dia, que é a atividade", explica. O segundo pode ter acontecido na própria coleta de dados. Como é responsável por uma pesquisa semelhante, realizada na CEI Suzana Campos Tauil, em São Paulo, a pesquisadora já utilizou a escala em questão. Segundo ela, a coleta de dados feita para este trabalho deixou interação e atividade no mesmo nível. "A própria observação dos pesquisadores, no registro dados, pode ter causado essa distorção. Porque são três vezes mais. É muita diferença", aponta.

Mesmo com as críticas, Tizuko reconhece que a pesquisa aponta as falhas mais graves da educação infantil. A questão que se coloca agora é como os gestores e professores se apropriarão dos dados obtidos. No evento de divulgação do estudo, a professora da Feusp sugeriu uma quarta etapa ao projeto, que levaria a equipe de volta à escola para discutir os momentos registrados. "Como os dados não dizem nada sobre a realidade da escola em si, é preciso individualizar os resultados. Seria interessante usá-los em grupos de formação dos próprios professores, para que eles percebam as práticas que funcionam", explica. E alerta: caso a prática seja incorporada, é preciso ter em mente que será um processo que trará resultados no longo prazo.